Caminhoneiro tem que ser respeitado na compra de veículo zero

Assim como ocorre com os proprietários de veículos leves, os profissionais do volante também têm direitos na hora de comprar seu caminhão.

 

Ter um veículo novo – zero quilômetro – é o sonho de milhares de brasileiros, principalmente, os que querem ter um carro de passeio. Mas, essa vontade, esse desejo também está presente na vida dos profissionais do volante: os caminhoneiros.

Porém, ao contrário dos compradores de veículos leves, os caminhoneiros ‘esbarram’ num detalhe: o transporte do seu veículo 0km. No caso dos automóveis, a viagem da fábrica até a concessionária é feita por meio de caminhão-cegonha, que transportam até 11 veículos. Já os caminhões e/ou cavalos-mecânicos é outra história.

Algumas montadoras – fábricas – fazem esse transporte por meio de pranchas; mas há montadoras que não têm a mesma preocupação e/ou filosofia e levam os veículos 0km rodando até a concessionária de destino, mesmo se for no Rio Grande do Norte, Pará ou outro estado do Brasil.

Neste caso, motoristas terceirizados, de empresas contratadas pelas montadoras, fazem o serviço. Entretanto, o tão sonhado veículo 0km não será entregue ao proprietário dessa forma, porque ele terá ‘rodado’ mais de 3 mil quilômetros, se considerarmos, por exemplo, uma viagem de São Bernardo do Campo (SP), sede das montadoras Scania e Mercedes-Benz, até São Luís do Maranhão.

Esse procedimento é rotina nessas duas principais montadoras de veículos de carga no País. No caso de empresas como DAF e Iveco, por exemplo, o transporte é feito em caminhões prancha.

Em reportagem do Estradas sobre o risco do transporte desses veículos pesados por motoristas e não nas pranchas, o diretor de Vendas da holandesa DAF, Gabriel Fernandes, esclareceu que tanto na Europa como no Brasil somente transportam os cavalinhos em caminhões prancha, para segurança dos motoristas e usuários das rodovias. Assim como para entregar veículos efetivamente “zero” km para os clientes.

“Nosso processo de entrega do produto é muito simples. Nós temos dois transportadores, que fazem a entrega para toda nossa rede de concessionárias no Brasil, que nós chamamos de ‘caminhões embarcados’, em pranchas. Nós entendemos que esse é um modelo que tem diversas vantagens, e dentre elas, a própria segurança, do motorista, a integridade do veículo e a agilidade na entrega ao cliente”, esclareceu Fernandes.

Agora, diante desse fato, o sonho de ter um caminhão 0km deixa de ser realidade e vira um ‘pesadelo’, já que o veículo pode chegar às mãos do proprietário com milhares de quilômetros rodados. O que pode ter impacto sobre as condições dos pneus, dependendo de como o veículo é conduzido e da calibragem utilizada. Sem contar o risco de acidentes, como explicam os peritos na reportagem O transporte perigoso de caminhões novos coloca vidas em risco nas estradas e cuidado para não receber como novo um caminhão que envolvido em colisões, como este da foto, quando era transportado como 0km para um novo comprador.

CAVALINHO 0KM: O “cavalinho” novo colidiu na BR153 em Santa Catarina quando era transportado para o comprador. Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros
Além do caminhão não chegar novinho nas mãos do feliz proprietário, tem a questão legal. Isso está certo? É amparado pela Lei do Consumidor? O Estradas foi atrás dessas respostas. Acompanhe.

A reportagem questionou os Procons dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão, além do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) para saber a legalidade desse tipo de compra.

A reportagem também manteve contato com dois escritórios especializados em Direito do Consumidor. Infelizmente, o Estradas recebeu as posições somente dos Procons de SP e Rio Grande do Sul e do IDEC, além de dois dos três escritórios especializados em Direito do Consumidor que foram consultados:

Dentre as questões levantadas juntos aos Procons, IDEC e advogados especializados, a reportagem quis saber:

1 – Os Procons têm conhecimento dessa forma de transporte feita por algumas montadoras?

2 – Qual a definição de veículo 0km para o Procon e IDEC?

3 – No caso de o Procon considerar veículo 0km somente os que têm pouquíssima quilometragem rodada (100 km ou 200 km), como ficaria o comprador de um caminhão no Piauí, Pará, Mato Grosso ou outro estado brasileiro situados longe das montadoras?

4 – O Estradas perguntou também se há exceção nesse tipo de negociação?

Apuração

As principais montadoras de caminhões no Brasil estão localizadas em São Bernardo do Campo (SP) , Curitiba (PR), Ponta Grossa (PR), Betim (MG) e Resende (RJ). Sendo assim, quando um caminhoneiro que vive no Centro-Oeste, Norte ou Nordeste do Brasil, compra um caminhão 0km em qualquer uma dessas montadoras, há a necessidade do transporte desse veículo até o estado onde ela estiver e/ou residir.

No caso de um comprador morar em Belém (PA) e comprar um caminhão da marca Mercedes-Benz, terá que esperar pela viagem de São Bernardo do Campo (SP) até o Pará , que totaliza aproximadamente 2.900 quilômetros. Logo, o então caminhão 0km chegará ao destino final com cerca de 3 mil quilômetros rodados, caso a montadora não use caminhões prancha como, por exemplo, a DAF.

Num outro exemplo, já mencionado, o comprador mora em São Luís do Maranhão e compra um modelo Scania. A viagem, nesse caso, é de São Bernardo do Campo (SP) até a capital do Maranhão, que totaliza 3.050 quilômetros.

Entretanto, segundo o coordenador do jurídico do Idec, Christian Printes, “o Idec não tem uma definição para o que é considerado ‘zero km’ porque não existe uma regulamentação ou lei específica sobre a matéria. O ideal é que sejam consultados especialistas sobre o tema para que seja possível verificar se há uma média para veículos produzidos em solo nacional, como em solo internacional, porque a quilometragem pode mudar a depender dos tipos de frete e transporte que serão realizados até que o carro chegue no seu destino final, e ainda todos os deveres de cuidado e segurança para que o veículo chegue em perfeitas condições de uso.”

Nesse tipo de situação, deve prevalecer o direito à informação ampla, transparente e antecipada, de modo que o consumidor possa exercer seu direito de livre e ampla escolha. Ou seja, o fornecedor deve informá-lo antes da compra sobre o frete e a possível quilometragem com a qual o veículo chegaria ao seu destino final. Não havendo essa informação clara, adequada e transparente, é possível questionar a concessionária sobre o trajeto e para uma melhor proteção do consumidor.

“Por se tratar de informação que poderia inviabilizar o negócio, o entendimento do Instituto é de que a falta dessa informação pode acarretar no desfazimento do negócio ou em uma das opções do art. 18 do CDC, como o abatimento proporcional do preço, a substituição por outro em perfeitas condições de uso ou o cancelamento da compra com a devolução da quantia paga. Esses mesmos direitos valem no ato da entrega técnica do veículo. É importante que o consumidor verifique se houve avarias no veículo, de modo que ele possa aceitar ou não o bem e escolher uma das três alternativas acima elencadas.”

Procon gaúcho

Na ótica do Procon do RS, o exemplo do comprador de caminhão se enquadra como prestação de serviço e não há uma relação de consumo no caso. Deste modo, essa situação deve ser trabalhada a partir do Código Civil sem incidir no Código do Consumidor (CDC). Embora este entendimento interprete o caminhoneiro como frotista ou empresa e não consumidor final.

Nesta interpretação o Código de Defesa do Consumidor consideraria que, quando uma empresa ou um cidadão realiza uma compra para prestar um serviço, esta deixa de ser o destinatário final. Ou seja, deixa de ser um consumidor. Sendo assim, esse tipo de demanda não chega aos Procon Estaduais em razão de ser uma relação civil.

Procon de SP

O Procon de SP também respondeu na mesma linha do Procon gaúcho, ou seja, que o exemplo do comprador de caminhão se enquadra como prestação de serviço e não há uma relação de consumo no caso. Deste modo, essa situação deve ser trabalhada a partir do Código Civil sem incidir no Código do Consumidor (CDC). “Quando uma empresa ou um cidadão realiza uma compra para prestar um serviço, esta deixa de ser o destinatário final. Ou seja, deixa de ser um consumidor. Sendo assim, esse tipo de demanda não chega aos Procon Estaduais em razão de ser uma relação civil.”

Advogados especializados

De acordo com o advogado Igor Galvão, do escritório Igor Galvão Advocacia – IGA, “as montadoras, ao comercializarem os caminhões, tem que respeitar as regras do Código de Defesa do Consumidor (lei federal). Ao vender um produto, no caso, o caminhão – a oferta tem que ser suficientemente precisa e também, verdadeira – e estar de acordo com a publicidade.

A publicidade enganosa é proibida, segundo o artigo 37 do CDC, e comercializar um caminhão dizendo ser 0 Km, porém já possuir alguns Km rodados, pode incidir neste artigo – configurando a famosa prática da publicidade enganosa, ensejando responsabilização do fornecedor.

Ainda, o fornecedor responde pela segurança do veículo que coloca no mercado de consumo – segundo os artigo 8 e 12 do CDC.

Dessa forma, um caminhão que já possui certa rodagem, sendo vendido como zero, possui mais riscos de acarretar problemas à segurança do consumidor.”

Como já dito acima, em caso de acidentes de consumo, o fornecedor é responsável, independente da comprovação da culpa. Vejamos:

“Art. 12, o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – sua apresentação;
II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi colocado em circulação.”

Assim, nesses casos, o caminhoneiro prejudicado poderá ingressar com uma séria de ações judiciais – requerendo indenização por todos os seus danos materiais e morais.

Importante dizer que, caso o caminhão adquirido (independente de ser realmente 0km, ou aparentemente 0km) apresente vícios internos, o consumidor prejudicado poderá reclamar para o fornecedor – dentro do prazo de 90 dias do aparecimento desses defeitos, requerendo a troca das partes viciadas em 30 dias.

Caso o vendedor se negue, o adquirente poderá:
– cancelar a compra, e pedir a devolução dos valores pagos;
– substituir o produto por outro equivalente.

A posição das montadoras multinacionais que entregam o veículo realmente em condições 0 km é uma boa prática de consumo, que cumpre o Código de Defesa do Consumidor, se alinhando ao artigo 8, 12, e 37, e também ao artigo 6 (direitos básicos) da legislação.

Por fim, os caminhoneiros são, sim, considerados consumidores. Normalmente, define-se consumidor por ser aquele como destinatário final do produto, sem usá-lo para sua atividade comercial.

Porém, para caminhoneiros, usamos a teoria finalista mitigada, na qual é considerado consumidor a pessoa física ou jurídica que, embora não seja a destinatária final do produto, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica em relação ao fornecedor (que é justamente onde grande parte dos caminhoneiros e transportadores se enquadram).

Já, segundo Bruno Oliveira, advogado e sócio do Oliveira & Dansiguer – Advogados, sobre o assunto há que se considerar três pontos fundamentais:

1º – Pode ser considerado zero quilômetro? Caso um veículo zero quilômetro transite de um Estado para outro atingindo milhares de quilômetros poderá perder a qualidade própria de um veículo novo, possibilitando o ressarcimento do valor atualizado que foi pago pelo veículo e dano moral pela quebra da legítima expectativa de aquisição de um veículo zero quilômetro.

2º – Dano no pneu devido a rodagem? Caso o caminhão seja entregue com dano nos pneus e ficar comprovada a falha na prestação de serviços, tanto a concessionária quanto a montadora poderão ser responsabilizadas, conforme disciplina o artigo 18 do CDC. Abaixo trecho de uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: “Conforme entendimento consolidado pelo colendo Superior Tribunal de Justiça, ‘a concessionária, na qualidade de fornecedora, responde solidariamente à fabricante em caso de falha na prestação de serviço, a teor do que dispõe o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor” – Comprovada a ausência de reparo no veículo zero quilômetro, no prazo legal de trinta dias, que comprometeu sua qualidade, a rescisão contratual com a restituição da quantia paga é medida que se impõe – Sendo rescindido o contrato de compra e venda, necessário o desfazimento do contrato de financiamento, que forneceu meios para a formalização do primeiro – A aquisição de caminhão zero quilômetro que apresenta avarias incompatíveis com veículo novo, não pode ser relegada ao plano do mero aborrecimento, caracterizando ilícito civil e dano moral passível de reparação” Fonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG – Apelação Cível: AC 0123154- 84.2011.8.13.0114 – Ibirité.

3º- Caminhoneiros e Transportadores são considerados consumidores? Com relação aos caminhoneiros, em muitos casos, o judiciário tem reconhecido a relação de consumo por se tratar de destinatário final. Porém, com relação às transportadoras o judiciário tem se posicionado no sentido contrário, decidindo que além de não ser a destinatária final ela utiliza o veículo para o desempenho de sua atividade comercial, conforme prevê o artigo 2° do Código de Defesa do Consumidor. O artigo 2° da Lei consumerista prevê que: “Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” Fonte: CDC e Consulta jurisprudenciais nos tribunais de justiça do Estado de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro.

 

Matéria publicada no site https://estradas.com.br/caminhao-zero-quilometro/ em 07.08.2023.